terça-feira, 15 de janeiro de 2013

O PRIMEIRO ENCONTRO DE GUIDO NOLITTA COM MR. NO - PARTE I

Um conto de Jorge Magalhães, ilustrado por mim...
 Eu e o Jorge Magalhães já trabalhámos juntos por diversas vezes. O nosso primeiro projeto foi Missão Quase Impossível, uma história de banda desenhada de sete páginas, que faz parte integrante do álbum Vasco Granja, Uma Vida... Mil Imagens. Depois, voltámos a unir forças em Ok Corral, um curta de quatro páginas, feita para o Moura BD, onde o meu pseudónimo Jhion teve a sua estreia. No ano passado, participámos numa homenagem feita pelo Tex Willer Blog a Sergio Bonelli, o editor de várias revistas, entre as quais o famoso Tex Willer, no primeiro aniversário da sua morte. O Jorge, inicialmente pretendia que fizéssemos mais uma BD, mas como eu estava sem muito tempo livre, acabámos por optar por esta versão: um conto com várias ilustrações, do qual hoje publico a primeira parte. Para quem não está por dentro do percurso de Sergio Bonneli, fica a nota de que Guido Nolitta era o seu pseudónimo, quando trabalhava como argumentista. E foi, sob esse nome, que criou aquela que se viria a tornar numa das suas mais emblemáticas personagens: precisamente Mr. No, um herói que refletia o amor que Bonnelli sentia pelo Brasil, nomeadamente pela enorme vastidão amazónica. Fica então a primeira parte do conto:



I

AMAZÓNIA MEU AMOR



     O motor do pequeno hidroavião ronronava suavemente, enquanto o seu tripulante manobrava os comandos para descer sobre as margens arborizadas do rio, cuja curva já se avistava a algumas centenas de metros.
     Um sorriso de satisfação franziu os lábios do piloto. Com uma volta rápida, o aparelho sobrevoou a aldeia dos Caiapós, saudado pelas exclamações alegres de alguns índios, que correram para a margem, ansiosos por ver o veloz pássaro pintado de verde e amarelo pousar nas águas do rio.
     Guido Nolitta endireitou o nariz do hidro e preparou-se para a amaragem, deitando um olhar distraído ao painel de instrumentos, onde algumas agulhas que indicavam a altitude e a velocidade do aparelho giravam como o ponteiro de uma bússola a cada oscilação da carlinga.



     O audaz aventureiro de origem italiana, com perto de 40 anos, sentia-se feliz sempre que sobrevoava aquela região da Amazónia, ao encontro dos seus velhos amigos Caiapós, em cujas aldeias era recebido festivamente, sobretudo pelo chefe Ubirajara e pelos seus filhos, um bando numeroso e chilreante de garotos que o seguiam por toda a parte, mal punha o pé em terra, à espera das guloseimas e dos presentes que ele lhes trazia no seu pássaro metálico. 
     Guido era um profundo conhecedor daquelas paragens e dos costumes dos seus habitantes. Dizia sempre, a todos os seus amigos, que no Amazonas também se sentia um índio. Adorava os rios coleantes como enormes serpentes e as majestosas florestas que os abraçavam num enlace lânguido que se tornava um festival de luz e cor nas manhãs em que cantavam os colibris e nos poentes dourados em que se ouvia o rugido do jaguar. Sim, Guido Nolitta era um homem feliz quando estava junto dos seus amigos indígenas, que o festejavam como um hóspede de honra. 
     Todos sorriam de contentamento ao vê-lo, até as moças mais jovens e bonitas, que não se importariam de lhe fazer companhia, estendidas na sua rede, com o luar a banhar-lhes os corpos quase nus, nas noites em que o Cruzeiro do Sul empalidecia o brilho das outras estrelas. Talvez um dia o Caramuru (o branco generoso e gentil) escolhesse uma delas, não para casar mas para lhe ciciar ao ouvido palavras tão excitantes como o ronronar dos motores e da hélice (era assim que ele lhes chamava) da sua casa flutuante. 
     Nessa noite, alva e cálida como a lua, despida das brumas que costumavam pairar sobre o rio, as fogueiras brilharam na grande clareira onde se erguia a aldeia dos Caiapós e os ruídos da festa que Ubirajara oferecera ao seu hóspede ecoaram entre as árvores perfiladas, como vultos de espectadores, a alguns metros das choupanas. 

     – Sangue de Judas! A tua cachaça é a melhor do mundo, chefe! – exclamou Guido Nolitta, sorvendo mais um gole daquele líquido que lhe queimava a garganta e lhe fazia zumbidos no cérebro, como se um motor silencioso tivesse repentinamente despertado, acelerando continuamente o seu ritmo. 



     Guido gostava de beber em companhia do cacique Ubirajara, que conhecia há muitos anos, mas nunca – nem mesmo num bar de Manaus – perdia o controlo dos seus gestos e das suas emoções, tal como quando, a bordo do hidro, nas longas horas de voo solitário, bebia alguns tragos de um velho uísque para resistir às correntes frias, enquanto vagueava o olhar pela imensidão do Amazonas, aturdido pela beleza da paisagem e pela canção dos motores.






     Noite alta, já o som dos batuques e das danças se extinguira e a maioria dos Caiapós dormitava junto das fogueiras que ardiam à beira do rio, lançando clarões sobre as águas adormecidas e o pequeno avião amarado junto da margem, quando uma flecha de fogo riscou o céu constelado de estrelas. Ubirajara observou-a com um olhar mortiço e levantou-se, espreguiçando os membros.

     – Está na hora de recolher à minha cabana – disse o cacique, como se o fugaz cometa fosse um sinal. – Antes que o ardor da cachaça comece a subir pelo meu peito e a enfraquecer a minha língua. Tu sabes, ó meu amigo descido dos céus, que tenho poucas palavras quando sinto a cabeça tão vacilante como as luzes das fogueiras ao amanhecer.
     Guido sorriu.
     – Não és o único, chefe. Boa noite!



     Atrás de Ubirajara, num cortejo silencioso e lento, homens, mulheres e crianças arrastaram os passos até às cabanas envoltas na profunda escuridão da noite. Não tardou que no terreiro se ouvisse apenas o estalar dos ramos consumidos pelas chamas, que diminuíam de intensidade, espalhando um fumo branco e pouco espesso sobre as esteiras e as cabaças vazias, dispersas no chão onde pouco antes os pés se enroscavam, lambidos pelo suave calor do fogo.

     Guido Nolitta sentiu o silêncio descer sobre ele e apeteceu-lhe entoar em surdina uma velha canção de Nova Orleães, “Oh! When the saints go marchin’ in”, ritmando-a com um ligeiro assobio, enquanto recordava uma bela caipira que tinha amado ao som dessa música, num quarto do Hotel Amazonas, em Manaus. Depois, saboreou um último gole de cachaça e fitou melancolicamente o vago resplendor das fogueiras até sentir os olhos a piscar, transformando as sombras em pequenos pontos luminosos que dançavam como faúlhas na noite escura.
     Mas não se deixara vencer pelo sono, dormitava apenas, mergulhado numa espécie de letargia que lhe povoava o cérebro com estranhas e recônditas sensações. Era o efeito da cachaça, pensou ainda, antes de cerrar mais as pálpebras, deixando o corpo distender-se, leve como as asas do avião quando o frémito do vento as embalava.




II

PERIGO!




     Tão absorto estava nos pensamentos nostálgicos que o invadiam, trazendo-lhe imagens de outros encontros, outros amores e outros lugares, como se sonhasse, que aos seus ouvidos não chegou um leve rugido que fez agitar e estremecer a vegetação da selva, em redor da clareira. Um rugido tão abafado que só os macacos e os pássaros o ouviram, fugindo dos ramos e dos ninhos onde se preparavam também para dormir.
     Mas o rugido não se repetiu. Em vez disso, na orla do matagal imerso em trevas, cintilou o clarão furtivo de dois olhos raiados de ouro e sangue que espreitavam a presa. Os olhos magníficos e ferozes de uma onça pintada!
     Em silêncio, o corpo ágil, cujas manchas se confundiam com a folhagem, moveu-se entre os troncos, olhando fixamente o vulto do homem que parecia adormecido e a luz bruxuleante das fogueiras, onde crepitavam as últimas brasas. Então, esquecendo o temor e a prudência gravados no seu instinto primitivo, deu alguns passos fora do abrigo da floresta, dirigindo-se para o homem imóvel no centro da clareira.
     Guido continuava a sonhar meio acordado, sentindo a mente povoada por uma névoa estranha que devia ser, em parte, efeito da cachaça. Não era a primeira vez que isso lhe acontecia, mas geralmente por culpa da sua própria imaginação delirante, que não parava de sonhar com coisas que só existiam no seu espírito. Cenas e figuras sem nome e sem sentido, que depressa se esfumavam quando a realidade vencia a fantasia.
     A onça estava cada vez mais próxima da sua presa, mas Guido não se mexia, totalmente inconsciente do perigo, envolto numa nuvem de sonhos e de pensamentos etéreos como os vapores da cachaça. Sonhava com uma viagem que fizera muitas vezes e com alguém que ainda não conhecia… esse, sim, com um nome e uma existência reais. Ou estaria confundido? Talvez o nome fosse real, a identidade é que não…
     As profundezas da selva amazónica, mesmo à beira dos terreiros das aldeias ribeirinhas, podem esconder muitas ameaças e muitos perigos. Especialmente de noite, quando as fogueiras se apagam e vultos mosqueados, que rosnam surdamente, espiam as cabanas adormecidas. Guido Nolitta sabia tudo isso… mas estava embriagado de sonhos, sob o clarão do luar reflectido nos tectos de colmo e no espelho límpido das águas do rio.
     Se tivesse aberto os olhos, nesse momento, teria sentido um arrepio percorrer-lhe a espinha, porque a onça se agachara a alguns metros dele, fitando-o com um olhar que coruscava no pequeno círculo de luz derramado pelas fogueiras, de garras abertas e movendo a língua entre os dentes, que pareciam punhais afiados prontos a dilacerar o corpo da sua vítima.
     Foi então que algo inesperado aconteceu… algo que não estava escrito no grande livro da selva, onde os caçadores e as presas desempenham papéis determinados pelas leis da Natureza, cujo desfecho é fatídico para os mais indefesos quando certas regras de sobrevivência são esquecidas.









     Saindo também da espessura, um vulto humano, de aparência muito diferente da que tinham os índios, atravessou a clareira com a velocidade de um relâmpago e saltou agilmente sobre a onça, paralisando-a com um poderoso garrote dos braços musculosos, no momento em que o feroz carnívoro ia desferir o bote. Não parecia sequer um combate, mas o último acto de uma cena que se desenrolava sem testemunhas, na solidão e no silêncio nocturnos da selva amazónica.
     O rosnido raivoso e arquejante do felino, que não conseguia libertar-se das mãos enclavinhadas no seu pescoço e das pernas, tão robustas como os braços, que subjugavam o seu torso, impedindo-lhe os movimentos e roubando-lhe o fôlego, despertou finalmente Guido Nolitta, cujo olhar fitou, atónito, aquela cena que parecia saída de um livro de aventuras que lera há muito tempo.
     Num último sobressalto de agonia, a onça tentou ainda libertar-se, sacudir o adversário que lhe apertava a garganta com mãos que pareciam tenazes de ferro, mas esse ímpeto durou pouco. Tal como nos livros de que Guido Nolitta se recordava, o vencedor só podia ser o mais forte, o mais ágil, o mais destemido. E o mais forte era o homem!
     Com um estalido de vértebras partidas, a cabeça do grande felino pendeu de lado, nas mãos do atacante, mostrando a língua, como um farrapo vermelho, entre os dentes que não voltariam a morder, e o seu corpo mosqueado, de selvática e majestosa beleza, pareceu encolher-se, na rigidez da morte.



CONTINUA...

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